Showing 136 results

Archival description
Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora
Print preview Hierarchy View:

44 results with digital objects Show results with digital objects

Entrevista a Maria Leonarda Madeira

Composto pela gravação audiovisual da entrevista e a respetiva transcrição.

Transcrição Maria Leonarda Madeira
Entrevistada: Maria Leonarda Madeira (MLM)
Entrevistadora: Manuela Oliveira (MO)
Localidade: Portel
Data: 17 de outubro de 2023
Transcrição: Diana Henriques (15/11/2023)

MVI_ 6084
MLM:
É assim, eu chamo-me Maria Leonarda Madeira, nasci em Portel, na rua do Outeiro, até tenho um poema alusivo a isso. Os meus pais, o meu irmão, a minha mãe andava sempre com o meu pai. O meu pai era pastor, foi toda a vida pastor, foi o que o pai dele o ensinou e dele depois também ensinou ao filho dele, o meu irmão começou a andar com o meu pai, tinha para aí uns seis anos. Ele nem foi à escola foi. Então, o que é que acontecia, vivíamos naquelas, nós aqui chamamos-lhes malhadas, aqueles montes mais antigos, as aquelas casas mais antigas, que os patrões nos davam por favor, para não se pagar renda. Ou então fazíamos umas chochas, umas chochas que era umas pastas que não chovia lá dentro, mas pastas com mato. O meu pai lá sabia fazer aquilo com o que lhe tinham ensinado, aquilo havia umas tarimbas e ali estávamos todos. Era o meu pai, a minha mãe e a gente os três e eramos cinco ao todo.
Meu pai houve uma altura em que as coisas, nessa altura, estavam muito mal, muito mal, muito mal, a vida nessa altura, estava péssima. Então o meu pai tinha lá uma cabrinha ou duas, o que ele fazia para dar à gente de manhã, ordenhava a cabra e dávamos uma quartilha, uma medida de litro e era o nosso pequeno almoço, o nosso almoço e o nosso jantar. Que era leite, não havia mais nada. Ou então ia-se apanhar uns poejos lá ao barranco e fazia-se uma açorda, não havia mais nada.
Então a minha mãe arranjou trabalho por conta do mesmo patrão, e o meu pai andava com a gente as duas que éramos mais pequeninas, num alforge, uma de um lado do alforge e a outra do outro. E chegava ali a um riacho, lavava a cara à gente, tinha um pente pequenino na algibeira, penteava a gente e quando tínhamos fome ordenhava a cabra. Era o que havia e não havia. Era uma miséria, uma miséria muito grande.
O que é que aconteceu, chegamos à idade escolar, idade escolar. O meu mano, porque não podíamos ir os três para a escola, porque ele fazia muita falta ao meu pai, porque o ajudava no gado, chegou a ficar noite inteiras só a vir comer, porque o meu pai às vezes nas paródias não aparecia e ele coitadinho, para não ter medo, fazia fogo, fazia um lume. Que dizendo que fazendo lume os bichos já não se aproximavam.
E então nós íamos para a escola, para a da minha avó. Uma viúva, uma pobrezinha que andava à esmola, que ia buscar a comida a uma casa, que lhe chamávamos a casa da sopa, para aquelas pessoas que eram viúvas, não era para toda a gente, mas que era viúvo. Tinha um cestinho, com uma panelinha lá dentro, uma tampinha de cortiça e ia todas as tardes aquela casa da sopa buscar feijões, uns feijões com arroz ou feijões com massa, era o que lhe davam. Um quarto de pão e ia todos os dias buscar. Quando chegávamos a casa da minha avó, fui muita vez buscar, já depois de maiorzinha. Vai lá buscar a sopa da avó filha e eu ia. O que é que a minha avó fazia, como éramos mais, que ela também tinha netos de outros filhos, que também não tinham há mesma, que aquilo era igual. A gente tapava-se com sacas, as nossas camas, os nossos colchões eram palha de milho, tapávamo-nos com sacas. Andávamos a trabalhar até com sacas, a minha mãe andava a trabalhar com uma saca à cintura e uma saca às costas. Uma saca é aquelas sarapilheiras, aquelas sacas de sarapilheira, onde a gente mete hoje o carvão, mete assim os cereais ou as coisas. E então era assim, eu ia buscá-la e a minha mãe quando chegava a casa, uma casinha pobre, humilde, que nem um chão direito tinha, de terra, de terra. O chão era terra, nem era direito, tinha uma rocha daqui uma rocha dali, porque era só o que havia.
E a minha avó ainda lhe metia um cocho, nós chamamos um cocho aqueles cochos de cortiça, um cocho de água lá para dentro dos feijões, porque a ver se eles davam para mais algum. Quer era para dar pelo menos uma tigelinha para cada um ou um pratinho a cada um, daquela sopa. E ela ia à esmola com um rancho de viúvas e de pessoas que não tinham nada aí pelas casas ricas, nós tínhamos cá muitas casas ricas em Portel. Tínhamos muito latifundiário nessa altura. E então elas andavam coitadinhas, um dava-lhe um tostão, outros davam dois tostões, outros davam uma bolacha, outros davam uma pinga de azeite, era assim. E ela levava para casa tudo quanto lhe dessem, ela levava para casa, um bocadinho de pão, que a gente estávamos lá. E eu dizia, avó não vás à esmola e ela dizia filha como é que a avó não vá, então o que vocês comem, então o teu pai não pode dar nada, os teus tios estão na mesma, o que é que a gente come? Tenho que ir, pelo menos a gente ganha para o petróleo para acedermos o candeeiro e para fazermos alguma coisa para a gente comer, com a pinga do azeite.
E então assim fomos, eu andei à escola, a minha mana também andou e cheguei à quarta classe.

MVI_6085
MLM:
Então a minha juventude foi assim. Acabamos a escola, o que é que havia para a gente naquela altura? Era trabalho. Não havia mais nada. Acabamos a escola e fomos logo, tinha dez anos e já ia apanhar grão, dos tremoços, aqueles trabalhos assim sem serem trabalhos de muito peso.
Depois, com onze anos já ceifava, quando foram as oito horas, quando foi aquela revolução das oito horas que as pessoas não trabalhavam de sol a sol, trabalhávamos de sol a sol. Eu apendi ainda a trabalhar de sol a sol, era nascer o sol começávamos a ir para o trabalho, punha-se o sol e o manajeiro, o manajeiro era o encarregado que andava no trabalho, vamos embora, mas era preciso o sol estar bem escondidinho. Depois houve uma luta das oito horas, já era mais crescidinha, já eu tinha não sei era catorze ou quinte anos, já não me lembro bem, mas sei que nesse ano da luta das oito horas estávamos ali numa, numa herdade de um senhor aqui na freguesia da Atalaia, quando as oito horas, quando houve aquela revolução das oito horas. E então foi assim, os senhores, os ranchos que iam para a ceifa de Portel fazia as oito horas e os trabalhadores que estavam debaixo dos telhados, que moravam nas casas dos patrões, faziam as doze, porque estavam lá morando com ele.
Eu fui começar a trabalhar mais o meu irmão, no dia em que essa lei foi nova, fui começar à ceifa mais o meu irmão, eu levava uma rendinha para ir fazendo ali enquanto tínhamos algum bocadinho de descanso e eles chegaram e vamos começar a trabalhar, vamos começar a trabalhar. Fomos trabalhar. O meu pai andava ali com as ovelhas, nessa altura o meu irmão já perito, aprendeu os trabalhos todos do campo. O meu pai disse vais aprender os trabalhos todos do campo, se não quiseres ser pastor não és, se quiseres ser pastor és, mas enfim ele pronto. Fez sempre, sabe tudo mas foi pastor. E então começamos a trabalhar, o meu pai deu ali a volta com o gado, parece que estou a ver ali a herdade em que andávamos a trabalhar e ele disse assim, então quem é que te mandou ir trabalhar? Foi o manajeiro. Não, não, vocês só vão trabalhar quando vier o pessoal de Portel, quando vier os de Portel é que vocês vão trabalhar. Era o que mais me faltava agora era vocês irem trabalhar quatro horas mais que os de Portel, não nem pensar. Vão para a sombra do chaparro. Pois fomos para a sombra do chaparro e pus-me a rimar a rendinha e como é o picado e como não sei o quê. Quando a malta, chegou o pessoal de Portel e o rancho de Portel começaram a tratar das semedidas e começar a fazer o lume e não sei, não sei quê e começaram a trabalhar. Vá agora vão lá com esses. Fomos. O patrão à noite despediu o meu pai. Mandou-o chamar, lá onde ele vivia, vivia no monte. Diz lá ao Pedro Madeira que venha cá. O meu pai foi. Então que é que querem? Tas despedido. Então olhe, não é tarde nem é cedo, telefone já, telefone lá, que você tem telefone aí aos Farins para me virem buscar a tralha que eu vou-me imediatamente embora. Para onde é que agente vinha? Para a casa da minha avó. Os meus pais não tinham casa e ela tinha aquela casinha, muito humilde, que o estado tinha arranjado da do Alfredo, era do Alfredo e da Maria Joana, tinha aqueles altos lá ao pé do castelo.
Então para a do meu pai e para a da minha avó, viemos outra vez todos. Para a da minha avó outra vez. Ela coitada arranjou lá espaço e para ali ficamos. Tive de me ir defender à minha mãe, não quer ir trabalhar com as mulheres da vila? Eu não as conheço bem. Ó Maria, não sejas parva, a gente tem de trabalhar com toda a gente. Bom comecei aqui a trabalhar em Portel, pois, logo em pequenina também, às vezes até irmos de noite, aos trabalhos que começavam mais cedo e depois vínhamos mais tarde. Quer dizer fugíamos ao calor, ao sol. Comecei a ir trabalhar aí com a malta da vila, comecei, começamos a ir na vida da gente, vida da desgraça. Molhadelas, vínhamos molhadas quilómetros e quilómetros a pé e vínhamos molhados cheios, cheios sem termos um plástico. O plástico já apareceu depois, que não havia plásticos, só havia aquelas ditas das sacas que eu digo e não havia botas de borracha, não havia um plástico, quando chegamos as minhas primeiras. Mas éramos tão parvas, tão parvas nessa altura, vínhamos cantando o caminho inteiro.
Uma vez vínhamos com uma molhadela tão grande, que fomos bater à porta de um patrão, que era o Manuel da Corte e começamos a cantar: Ó senhor Manuel da Corte, que é um grande ramalhete, tente lá dar mais um tostão da algibeira do colete. Já vínhamos com uma molhadela tão grande e ainda fomos cantar à porta do outro. Éramos mesmo alteras, mas éramos parvas mesmo. Não interessa.
Então começamos a trabalhar, íamos para onde havia. Entretanto o meu marido foi para guarda florestal, já estou a falar do casamento. Fiz assim, já tinha quinze ou dezasseis anos, eu tinha um grande corpo, eu era uma grande mulheraço, comecei a namorar. Ele já me ia buscar à porta da escola. E então, começamos a namorar e fizemos vida juntos. Fizemos vida juntos, nasceu a minha Maria Rosa que é a minha filha mais velha, ele estava na tropa em Beja. Depois foi para Évora, para a tropa de Évora, mas foi como outros fomos para Évora para o pé do meu pai, que o meu pai era pastor em Évora nessa altura. E então o que é que aconteceu, entretanto ele sai da tropa, tem trabalho, vamos, ele vai para guarda florestal, ali para um monte que é laranjeiras do doutor Zé Rico, doutor Zé Rico. Vai para guarda florestal, nasceu lá a Ana Paulina e os meus outros filhos mais velhinhos estavam em idade escolar, mas não havia ali escola, e não tínhamos transporte para os trazer para Portel. Então andamos a fazer petições, baixos assinados para o governo, para os presidentes, para os, para os cíveis também. Na altura havia em Évora, e então andamos pedindo que os rapazinhos por Évora, que havia doze ou treze rapazinhos que precisavam de escola, mas era uma escola na Atalaia, que era duas casinhas, pronto, não interessa, era a sala de aula, comum a casinha de banho e pouco mais, mas os rapazinhos começaram a ir para lá.
Foram para lá à escola e a professora dos meus filhos nessa altura, tinha, já estou a falar na revolução agora, vá. A professora dos meus filhos tinha o marido no ultramar e ao sábado era o dia em que eles faziam aquelas coisas de cante e de, ao sábado não trabalhavam normal, era livre, era um tema livre. E a professora dos meus filhos, já lhe andava dizendo que isto estava, ia haver uma revolução, por causa das tropas do ultramar, estavam a morrer muitas tropas, ia haver uma revolução e ensinou-lhe a Grândola ao sábado. Mas eu não sabia de nada, não sabia de nada, ela ensinou-lhe a Grândola. Entretanto, os rapazes vinham e quando chegavam ao monte calavam-se, isto não é para se dizer a ninguém, isto é só para aqui, não se canta em lugar nenhum, não se diz a ninguém. As crianças não diziam, com certeza.
Bom, naquele dia da revolução, os rapazinhos vão para a escola e voltam para trás daí a bocadinho. Digo então não houve escola? Mãe houve uma revolução, a cantiga da nossa professora já se pode cantar. Pus o rádio e tínhamos um rádio e uma televisãozinha de bateria, tínhamos uma televisãozinha pequenina de bateria e tínhamos um rádio, fui ligar o rádio e estava cantando a Grândola. Olha, olha é a nossa cantiga, vocês cantaram. Então e ela ensinou? Ensinou a nossa professora, que a nossa professora dizia que havia uma revolução. Eu ponho-me a observar aquilo bem, a ouvir aquilo muito bem, mantenham-se nas suas casas. Calma, para não haver distúrbios e não haver nada e vai da Grândola. Isto é uma revolução e vai. Isto é com do governo, com certeza. Bom lá comecei a perceber melhor aquilo e digo, pronto é uma revolução, os rapazinhos já não foram à escola.
Entretanto, já lá estávamos havia para aí já uns quê, a Ana Paula não chegou a ir pra lá à escola, passado aí uns tempos, a herdade foi apanhada pela reforma, pela cooperativa da Reforma Agrária de Monte Trigo, na rainha do Alentejo. Apanharam a herdade e nós viemos embora, viemos embora e viemos embora para Portel, os rapazes foram para a escola e eu fiquei. E houve uma reunião muito grande, nessa altura, porque as pessoas que andavam trabalhando nessas terras, não recebiam há muito tempo, os patrões já sabendo o que se ia dar, uns foram para aqui outros foram para ali e dinheirinho que é bom nada. Há pessoas que tiveram, olha ali o Marolinho disse um dia destes que teve onze ou doze meses sem receber. E depois, as pessoas não recebiam o que é que acontece, o que é que aquela reunião deu, fizeram uma reunião muito grande a malta de Portel, o povo foi todo aquela reunião e eles andaram com um microfone a avisar que ia haver uma reunião muito grande no sindicato, que a gente, era a casa do sindicato, para a gente se reunir para a gente sabermos o que é havíamos de fazer à vida, porque as pessoas não recebiam, que isto era uma crise muito grande que aí andava, que os patrões não apareciam, não pagavam. Fomos à dita reunião, foi-se, naquela reunião foi eleita uma reunião do sindicato, uma direção do sindicato, aonde fui eu eleita e a Teresa Navalhas, a Arminda, mãe do outro Capela que trabalha na câmara e uma senhora que está agora até no ar já, Maria Cecília. Fomos as quatro para, então porque é que não vão, mas então não podem os homens, porque têm outra coisa para fazer. Os homens têm mais coisas para fazer. Vão lá vocês. O que é que aconteceu, aquilo que é que se resolveu, é assim, não pagam nós vamos para as herdades. Vamos apanhar as terras, não podemos estar sem comer. Os nossos filhos têm de comer e tal qual os filhos deles, está-se aqui a criar uma grande crise e a gente vai avançar. E os homens dividiram-se, uns foram para uma herdade, outros foram para outra e começaram a trabalhar a terra, a trabalhar, a produzir, a semear e a fazer as coisas para a gente ter o que comer. Andavam a vender com um trator aí nas ruas, couves, repolhos, feijão, aquilo que produziam. E a gente ficamos ligadas ao capitão Porto, era um capitão em Évora, é que nos dizia, as do sindicato, era fazer a distribuição das mulheres, que os homens já estavam naquele sítio, também a descrição das mulheres trabalhadoras rurais. Eram as outras elas tinham a vida delas. E então, lá o que é que aconteceu e então, a gente é que distribuía as pessoas.
Ali na Quinta do Ramalho, por exemplo, a gente não quer cá mais mulheres, que o trabalho está quase pronto. Não quer, mas tem que querer a gente ainda tem aqui umas três ou quatro, manda-as para lá. E o capitão Porto telefonava de lá, então como é que estão para aí as coisas? Isto foi no tempo do 25 de abril em que se fazia tudo. Fazia-se tudo e mais alguma coisa. O que realmente, o poder foi dado ao povo. Tínhamos aí uma rapariga que era uma filha bastarda, era bastarda, o pai era um ricaço aqui de Portel, era o senhor Fonseca, um senhor ricaço, mas fez aquela menina à empregada dele, a emprega tinha para aí uns catorze ou quinze anos quando teve aquela menina, mas nunca a assumiu como pai. Apesar dele, dele nunca, se íamos com ela, ele comprava a ela e comprava a nós. Havia lá um funcionário na casa dele, uma pessoa jamais antiga, e ele mandava esse funcionário levar comida a casa da filha, mandava levar dinheiro.
MVI_6086
MLM:
Apesar dele fazer isso tudo, o que é que ela faz, ela era filha dele, mas ele não quis assumir. O que é que a gente faz a uma altura, o que é que dá na cabeça em fazer. Convidamos aí o pessoal da vila, da terra, com o microfone numa carrinha do José Colaço, e andamos na rua, quem quiser vir entregar a casa à Antónia venha hoje à tarde, que a gente vai lá entregar, a casa é dela. Ele tinha já lá metido um primo, um primo dela, um primo ricaço dela, até diziam que ele estava lá armado, não sei se estava ou não, que a gente nunca vimos a espingarda. Então a malta foi toda ter aquele largo, ele cortou a luz lá em cima e os nossos homens, subimos as escadas com os isqueiros dos homens, com os isqueiros dos homens, que naquela altura era de pedra, fomos lá acima. Chegamos à janela da casa dela, isto é tudo nosso, isto é da Antónia, Antónia anda para cá que a casa é tua. Estava aí o capitão Porto, entrou, entrou, pela casa dela. Era a altura em que se fazia tudo.
Íamos às entregas das terras e fazíamos tudo. Chamávamos tudo, a toda a gente, não sei como a gente não levou porradas. Houve muita gente que levou ainda porradas. Naquela entrega da terra, que é aquela, que é a Folgoa, era a Folgoa, as cooperativas estavam ligadas e pediam ajuda umas às outras. Quando havia algum problema numa cooperativa, então a cooperativa de Ilhó telefonou, ou mandou carta, ou telefonou para a de Portel, foi o nosso pessoal lá e ia só homens, naquela altura foi só homens, a ver se ajudavam, porque eles iam tirar ou um rebanho de gado, de vacas ou ovelhas, não sei do que era. Então a malta foi, a sorte naquele dia, por pessoas que viram mesmo, tive um cunhado que fugiu, foi ter quase a Évora à Torre de Coelheiros fugindo deles, a sorte foi a camioneta da carreira, a gente chama-lhe agora é os autocarros aí, abriu as portas, duas portas da camioneta para os homens que vinham fugindo meteram-se dentro e o homem da camioneta avançou. Porque a guarda com cavalos batiam, mas batiam a sério. Não era bater de brincadeira, era bater a sério. Escrutadas e cartadas até mais não. Então nessa altura, aqui em Portel também houve, eu um dia tenho um retrato do Ti Nabo tenho dos filhos, também levou umas vardascadas, já foi aqui na, aqui na cooperativa. Também viemos do São João, também mandaram a gente vir embora dos trabalhos, que ia aqui haver uma manifestação, depois eles ainda bateram aí, até não sei se foram os de cá se foram alguns de cá, já não me lembro, alguns guardas de cá, sei que levamos. Eu não levei, mas o meu cu também estava assim, como o de nove. A entrega das herdades, faz e já tiram as coisas à gente, estes, aqueles, os outros, a vocês estão muito alteradas, diziam os guardas, vocês aí estão um bocado alteradas. Abalávamos aí a corta mato, íamos para, andávamos por aí, mulheres doidas.
E então, o que é que aconteceu, deu-se então o problema de irmos para eleições, depois, quando foi a nossa candidata, quando foi o doutor João, que era, quando foi aquela salvação, não foi a junta de salvação, foi a comissão administrativa para a câmara. E só depois é que houve eleições e quando veio eleições livres, é que foi quando a Manuela Oliveira se candidatou e, pronto, lá ganhamos as eleições.

MVI_ 8088
Andei em todas, para além de andar no sindicato, andei sempre à frente, andei sempre na faixa na frente, andei sempre à frente. Fui candidata à freguesia de Portel, à assembleia municipal, andei lá uns poucos de anos, fui candidata ainda à câmara na lista da câmara, então depois fui eleita vereadora, um ano porque um camarada meu faleceu, já não quis continuar, eu refiro-me até onde a gente pode chegar, não precisava então não fiquei. Então fizemos assim, então andei sempre, sempre à frente. E o poder local democrático foi uma conquista, é a maior conquista de abril. Foi a maior conquista de abril, porque o poder autárquico, o poder autárquico democrático deu, era, era uma foi uma raiz que estendeu os braços, por tudo o que era bom para a população. Desde a saúde, desde as escolas, as escolas públicas, os médicos do nosso lado, à frente também nestas lutas, nestas greves, nestas coisas, vendo a gente, os professores, os professores o mesmo também fizeram tudo por causa da escola pública, porque só tínhamos as escolas da altura daquele senhor e nessa altura ficamos, nem com as escolas rapazes e raparigas, muitos porque também não havia, era rapazes de um lado e raparigas do outro, isso fazia tudo parte do outro regime.
Nós tínhamos médicos nessa altura em Portel, de todas, de todas as qualificações, de cabeça, de barriga de tudo, moravam aí nas herdades que tinham sido, onde os trabalhadores estavam. Vieram como voluntários, como não pagavam casa, tinham ali aquilo. E vinha muita gente de fora, do Norte, estrangeiros ver as cooperativas, ver como a gente atuava, ajudar, fazer perguntas, isto era uma amizade. A gente às vezes até cantávamos camaradas lá do Norte vem ao Sul passear, na nossa cooperativa há sempre mais um lugar. E então era verdade, as pessoas vinham eram bem-recebidas, isto era tão lindo, tão lindo que a gente íamos tratores inteiros de mulheres e íamos trabalhar para as herdades, que é o que às vezes me mete mais aflição. Íamos cantando todo o caminho e vínhamos e havia trabalho para todos e recebíamos o dinheiro todo ao fim do mês, então e agora? Você, você passa aí hectares e hectares e hectares de terra, tem, um rebanho de gado aqui e é porque têm subsídio e ainda lá estavam. Os patrões ainda têm subsídio e vêm uma pessoa ou duas numa herdade e ninguém trabalha, o trabalho, a gente sabe que hoje há outras máquinas e outras coisas, mas é assim no tempo antes do 25 de abril, o meu marido ganhava um conto e novecentos por mês que são dezoito euros, tinha eu já cinco filhos, já éramos cinco pessoas, quatro rapazes, seis pessoas com a Ana Paulina. Ganhávamos um conto e novecentos, veja dezoito euros. Na reforma agrária, quando a reforma agrária começou a gente recebia cinco contos, ora já foi uma grande diferença, de um conto e novecentas para a gente receber cinco contos é dinheiro. E o que é que as pessoas começaram a fazer com aquele dinheirinho, a vida das pessoas melhorou um bocadinho, não melhorou só na base da saúde e não melhorou só na base da educação, não melhorou só na base das autarquias, melhorou também nas famílias, com trabalho, começaram a fazer, cada um fazia a sua casinha como podia. Estes terrenos foram-nos dados pela autarquia, este terreno aqui onde eu estou foi nos dado pela autarquia, não foi só este, foi a rua toda para cima, foi nos dado pela autarquia. Tínhamos o terreno, então o que é que começamos a fazer, ao fim do mês tirávamos ali um dinheirinho e comprávamos umas sacas de cimento, comprávamos umas tijoleiras, comprávamos umas vigas, metíamos um pedreiro um dia, depois metíamos o pedreiro depois para outro dia, depois tinha ajuda deste, tínhamos a ajuda daquele. Fizemos uma casinha. Não foi grandes casas, mas dá para a gente viver e pronto, compramos uns sofás e umas televisões e era o nosso, tínhamos direito, tínhamos direito a isso, tal como os nossos filhos, também tinham direito a outras coisas, tal e qual como os outros. Mas é assim, quem diz hoje precisamente e daí para cá depois também houve uma altura em que as coisas também não havia trabalho, fazíamos a tapetes de arraiolos, fazíamos enfim aquilo que apanhávamos.
Mas agora, agora nesta fase em que a gente está as pessoas dizem, as reformas são pequeninas sim senhora, podiam ser melhores, podiam ser melhores sim senhora, podíamos ter mais, mais direitos à saúde podíamos, mas que o serviço nacional de saúde nunca acabe e que as reformas, também nunca acabem, porque o meu marido teve um avô que trabalhou 50 anos aqui no matadouro, 50 anos, no outro regime e não teve um tosto de reforma. Quando daqui o mandaram embora, já não podia trabalhar, foi para uma casa de banho e recebia o que as pessoas lhe queriam dar nas casas de banho públicas. Portanto não podemos dizer assim, estamos mal, estamos, estamos mal sim senhora, mas estivemos muito pior. Hoje a pessoa que está reformada, mesmo que ganhe 400 ou 500 euros, pronto é as reformas mais se calhar, também há quem receba 350, portanto essas ainda são piores, a gente hoje já não compra sapatos todos os dias porque já não precisa comprar, não compra roupa todos os dias porque já não precisa comprar, já não come o que comia certas alturas, já não gasta dinheiro em certas coisas. Hoje os reformados ajudam os netinhos, podem ajudar os netinhos e a vida da gente vai andando, se não tivermos doenças, se não tivermos doenças vamos indo. Melhoramos porquê? Porque houve uma eleição para o poder autárquico democrático e porque houve eleições livres e democráticas e as coisas começaram a melhorar.

MVI_ 6089
MO:
Que transformações é que teve nas relações com os maridos, com os filhos, com as outras mulheres? A participação na sociedade como é que foi conte lá mais um bocadinho disso
MLM:
As mulheres que eram ao fim e ao cabo, antes disto eram um objeto, eram um objeto, eram um objeto da casa, eram um objeto da casa, uma cadeira ou uma mesa que ali estavam.
Depois disto, a evolução das mulheres foi uma coisa fora do normal, porque é assim, quem é que via uma mulher num café, está quieto ninguém ia a um café, os cafés eram dos homens caminhavam de manhã e só de lá vinham à noite. Às vezes ainda vinham para casa e ainda vinham implicar e dar porradas. Era a comida feita e era mais nada, comida e vinho e estavam, e as mulheres começaram a pensar isto, isto realmente tem de levar uma volta. Tem de dar uma volta. Eu tinha aí uma amiga minha que íamos para uma reunião do partido, o meu marido crescia-lhe logo aí o mouco, eu chamo-lhe o mouco, porque ele punha-se de maldisposto. Eu vou para a reunião do partido e eu dizia assim à Teresa, o meu já está mouco, mas eu agora vou, que é para ele se contrariar. Assim é que ele tem de aprender e íamos. Vínhamos de lá sozinhas às duas e três da manhã, logo no princípio eles não queriam isto, até onde é que andaste até estas horas.
O meu marido não teve outro remédio se não habituar-se, teve de se habituar. E as coisas evoluíram de uma tal maneira, quem é que ia às piscinas de mulheres velhas, quem é que vestia um fato de banho, está quieto, nem os maridos queriam, nem pensar em tal, elas não podiam andar com as pernas à mostra quanto mais um fato de banho. E então, houve as piscinas municipais, houve outra mil e uma coisa que a gente aderiu e a evolução das mulheres tornou-se uma coisa muito mais livre, nem tem comparação com o antigamente. Pois, então aqui em Portel viu-se, eu até dizia assim na brincadeira, desde que as piscinas foram feitas ainda não vi tanta mulher com as mangas à cava e com vestidos curtinhos. Também se aproveitaram um bocadinho daquilo, fizeram elas bem. Pois, e então foi assim.
Começamos a ter a nossa vida e agora todos os dias vamos ao café, vamos aonde a gente quer e tem vontade, porque a gente para se darmos ao respeito nem é preciso estar metidos em casa e a fazer as vontades, por isso é que hoje em dia a malta mais moderna mete-lhes as coisinhas na mala e mete-a à porta. As raparigas de hoje, eu não censuro as raparigas novas fazem isso. Não, não censuro, porque é assim, não se dão, cada um para seu lado. Está bem é bonito o casamento, é bonito o casamento, é bonito é bonito, mas aquilo também não somos nenhumas servas. Olha agora, estou há sessenta anos com o meu, mas também não tenho assim grandes, não tenho muita ofensa. Não tenho, porque o contrariei. Uma vez levei uma sova dele, porque eu tinha um grupo, tinha um grupo que era o Estrela Vermelha, e fazíamos assim coisas de teatro da minha cabeça, andávamos aí nas aldeias e então ele então onde é a volta. Vou para o Alqueva, os rapazes vão lá. Começamos a mandar vir um com o outro, era na festa da Páscoa, a minha sogra tinha feito uns bolos, mas tinha-os deixados malcozidos, ele apanhou um bolo daqueles e aventa-mo aqui e eu tinha os dentes a quererem apodrecer e eu mordo, com o dente mordo aqui o lábio, assim que eu vi o sangue, filha, eu disparatei. E agora vou, agora vou, agora vou aqui limpar a boca e vou ao Alqueva, estava destinado a eu ir ao Alqueva. E o pífaro não leva aqui a minha Maria Rosa, e passou aqui na minha rua e disse-me assim, ainda há bilhetes para o golfe, não é assim, ainda há bilhetes para o judo. Eu digo assim, este agora também me veio chatear a cabeça, o Zé Pombinho tinha um feitio dele. Não vás, não vou o quê, mas você é que manda? Você manda tanto como manda ele. Olha lá que dás cabo, quero lá saber e fomos, e fomos. Eu contrariava-o assim, ele já não se importa. Coitado, também já não quer saber de nada, agora diz-me assim, vocês estão a querer-se enganar, então vocês estão nas anedotas, pois não sei.

Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora

Entrevista a Josefa Correia

Composto pela gravação audiovisual da entrevista e a respetiva transcrição.

Transcrição Josefa Correia
Entrevistada: Josefa Correia (JC)
Entrevistadoras: Maria Ana Bernardo (MAB), Manuela Oliveira (MO)
Localidade: Ilhas de Arraiolos
Data: 09 de fevereiro de 2024
Transcrição: Diana Henriques (22/05/2024)

MVI_6553
JC:
Chamo-me Josefa do Carmo Carolino Correia, nasci nas Ilhas, vivo nas Ilhas, continuo nas Ilhas.

MVI_6554
JC:
A minha infância, os meus pais eram muito pobres. O meu pai vivia, trabalhava no trabalho do campo, no rural, a minha mãe também. Éramos cinco irmãos, eu era a mais nova, mas graças a deus, com o esforço do meu pai e da minha mãe, de trabalharem tanto, de se levantarem às cinco da manhã para irem trabalhar de sol a sol. Nunca nos faltou pão, nunca passamos fome, nunca andamos descalços como algumas crianças andavam, nunca tivemos roupa de querer vestir, embora a minha mãe a lavasse à noite para nós a pudermos vestir de manhã, mas tivemos sempre roupa para vestir.
E foi uma infância muito dura, porque os meus pais trabalharam muito e penaram muito para criar cinco filhos. O meu pai trabalhava no campo, teve um acidente que partiu os dois joelhos, esteve em Lisboa um ano, sem nós o pudermos ir ver, que era as minhas irmãs mais velhas, não era eu, eu vi contaram ao meu pai e sem a minha mãe ter dinheiro para o ir ver. Esteve um ano no hospital sem ninguém o ver, sem ninguém o ver. Só quando se pôs capaz é que veio para cá, porque nessa altura só se podiam ir ver os ricos, os pobrezinhos não tinham dinheiro para nada. Que tivessem doentes, que não tivessem, estavam para lá arrumados um ano, que não havia camionetas, que não havia dinheiro para camionetas, não havia dinheiro para autocarros, não havia dinheiro para nada. Se não só para comer e mal.
Foi a minha infância foi assim. Brinquei muito, ria muito, cantava muito. Era uma pessoa muito alegre, até me puseram Maria Papoila, que ainda hoje me chamam Maria Papoila, porque eu gostava muito de cores, andava sempre de mini saia. Vivi a minha infância muito feliz, muito feliz. Com amigas muito boas, que ainda hoje nos damos bem, de coração, porque hoje já não há essa amizade de coração, mas eu ainda tenho amigas de infância de coração. Então eu tive uma infância muito bonita e muito boa. Nunca tive um pai que batesse numa filha, a minha mãe era um bocadinho mais áspera, mas eu tive um pai que era um excelente pai, o meu adorado pai, que morreu como nós não queríamos, mas a vida é assim.
Ainda hoje tenho quatro irmãs, nunca nos brigamos, nunca ainda discutimos, nunca tivemos nada, todos nos damos bem. Tivemos uma infância pobre, muito pobre, mas muito bonita. O meu pai sentava-nos à chaminé: Filhas venham cá cantar com o pai. E vinha farto de trabalhar, e nós sentávamo-nos todos à roda dele ao lume que era a chaminé grande e ali estávamos a cantar. Ele gostava muito de cantar Ó Oliveirinha da Serra; O chapéu preto, Ó que lindo chapéu preto. Foi uma infância muito linda que eu tive.

MAB:
E quando terminou a quarta classe, depois ficou em casa ou foi imediatamente trabalhar?

JC:
Quando terminei a quarta classe, havia um senhor que era de Vila Viçosa, que era o senhor, não me lembro bem, mas o último nome dele era Ortigão, que era ali na SOFAL quando se vem de Évora, aí é que nós cosíamos tapetes. A senhora que mandava na gente, que já morreu, chamava-se Maria de Jesus e então, nós íamos para lá trabalhar. Nessa altura não havia aquela coisa de termos só de trabalhar aos dezoito anos, a qualquer idade ia. Mas foi um senhor muito bom, porque nós íamos para lá com treze e catorze anos e ele dava-nos as regalias todas. Punha-nos logo na segurança social, tive logo segurança social desde os treze anos, tinha no bilhete, que ainda eram aqueles bilhetes antigos. Parecia uma boneca de cera, a gente éramos tão pequeninas e magrinhas, que nos deu logo as regalias todas. Trabalhei lá muitos anos, muitos anos. Quando se deu o 25 de Abril, então aquilo acabou. Então houve uma outra senhora que se chamava Senhorinha, que depois montamos os tapetes mais cá em baixo, ao largo da estrada, uma casa que aí estava

MAB:
Em Arraiolos?

JC:
Não, nas Ilhas à mesma. Que ela fazia parte sindical e depois montou esses tapetes, mas depois eles não compravam, a gente não tinha para onde distribuir, porque os ricos não compravam, porque se tinha dado o 25 de Abril. E ela então, acabamos tudo com isso. Depois formou-se a cooperativa dos tapetes. Formou-se a cooperativa dos tapetes até hoje. Como eu era sócia, uma ia-se associando a outra, pagávamos nessa altura, 750 escudos, 750 escudos para associarmos. Cosíamos lá quase toda a gente, da minha mocidade, cosia lá muita gente das aldeias, muita, muita gente sempre lá a coser. Depois essa senhora fechou aquilo, não fechou, meteram outras na comissão, essa senhora foi para a Suíça, não quis saber dos tapetes. Eu trabalhei lá muitos anos ainda, trabalhei lá para aí uns 20 anos.
MAB:
Na cooperativa?

JC:
Na cooperativa dos tapetes, cosi lá para aí 20 anos. E depois tivemos uma altura aí mesmo na cooperativa, eu como tinha cinco irmãos tivemos de sair, porque os meus pais não tinham dinheiro arranjado para a gente, porque nós não recebíamos ordenado, porque eles não compravam os tapetes. E então cada uma decidiu ir trabalhar para seus lados.
A minha irmã mais velha casou com 20 anos, trabalhou sempre no campo, eu cosia tapetes, mas depois cosia em casa. Havia muita gente que cosia em casa, ia buscar à fábrica e cosia em casa

MAB:
E era uma ajuda

JC:
Era uma ajuda, para o marido que andava com os camiões fora para o Algarve, para o Norte e isto, e ela cosia em casa. De maneira que eu cosi sempre nos tapetes. Depois fomos ainda para a fábrica do tomate, que era além ao pé da igrejinha, ainda trabalhei lá uns meses grandes. Depois voltei outra vez para os tapetes, para a cooperativa, e aí, nos tapetes, andei muitos anos outra vez, muitos anos. Trabalhei à volta de todo o tempo que lá estive, para aí uns 20 anos na cooperativa.
E depois engravidei do meu filho, tive nove meses na cama, porque não podia fazer nada. Nasceu ele, tinha a minha sogra uns primos que tinham uma fábrica que fazia peças para a TYCO, ele trabalhava na TYCO, então a minha sogra disse: Ó Josefa, como comprastes agora a casa, fizeste agora uma casa de novo, tens mais despesas, tens a menina, se tu quisesses na fábrica, tu ganhavas mais e eu pedia ao meu primo e tu ias para a fábrica. E assim foi. A minha sogra pediu ao primo, eu ao fim de dois dias estava na fábrica. Tinha o meu filho seis meses, fui para essa fábrica trabalhar. Trabalhei lá dezassete anos, sem perder um dia.

MO:
Em Évora?

JC:
Em Évora. Sem perder um dia. Eu no gráfico quando me vim embora, disse que foi das melhores empregadas que eu cá tive, mesmo com filhos pequeninos, nunca perdeste um dia, nunca faltaste uma hora, nunca faltaste um sábado. Nunca faltastes nada.
E depois vim-me embora de lá, depois entrou o senhor Sócrates, que deu a reforma aos 55 anos, com 40 anos de caixa. Eu tinha 42, nessa altura a minha filha tinha-se divorciado, tinha três netos pequeninos, a mais pequenina tinha dois anos e meio, nós é que a tínhamos de ajudar, se não mais ninguém se não os pais, nós os pais fazemos tudo por tudo. E eu vim-me embora da fábrica, para fazer pelos meus netos, não era para fazer, porque eles estavam na creche, era para os ir levar, ter tempo dos ir buscar e levar, porque a minha filha trabalhava em Montemor na Santa Casa da Misericórdia, quando era as oitos horas tinha de lá estar. Ora os meninos tinham de estar na pré-escola ou na creche às nove, ora como é que eu podia estar às sete horas a trabalhar numa fábrica, para depois os ir levar às nove. Tive de sair. Saí da fábrica, vim para o desemprego.
Vim para o desemprego, estive três anos e quatro meses no desemprego. Tive um ano na Santa Casa da Misericórdia, estive um ano na escola primária das Ilhas, estive outro ano no ciclo de Arraiolos. Depois daí saiu a lei de aos 55 anos, com 40 anos de caixa, passar para a reforma. Passei do desemprego para a reforma. Para a reforma a trabalhar, continuei a trabalhar, porque a reforma era tão pequenina, que não dava, porque me penalizaram cinco e meio porcento. E a senhora disse-me lá, quando a senhora fizer os 66 anos, vai recuperar esse dinheiro e fica com a sua reforma por inteiro. Mentira. Ficamos na mesma. Fui lá, ficamos na mesma, como fiquei da primeira vez, foi como fiquei até agora.
Tenho de trabalhar para ajudar os meus netos, para ajudar as minhas filhas, os meus filhos, porque infelizmente, não têm ordenados para comprar uma casa. Eu quando comprei a minha casa, tirava, levantava 2000 ou 3000 euros e desse dinheiro, levantávamos despachávamos os papéis para poder comprar a casa. Eles agora têm de ter 20 000 euros ou 10 000 euros, o meu filho foi, tinha de ter 10 000 para a papelada, fora do que lhe emprestavam, ele tinha de ter 10 000 euros, para ter papéis para a Caixa Geral de Depósitos, para lhe fazerem os papéis para ele poder comprar uma casa. Como é que é possível com os ordenados que eles têm? Com 800 euros, está bem que agora levantou um bocadinho mais, mas de qualquer das maneiras, levantamos mais, como é que esta juventude pode comprar uma casa? Eles têm que abrir a pestana, eles têm que abrir a pestana. Não é com o ordenado que eles ganham que eles vão a algum lado. Eles estão até aos 40 anos em casa dos pais. Eles têm filhos, divorciam-se e vão para casa dos pais. Eles não têm dinheiro, vão pedir aos pais que estão reformados. Eles têm de ver o que andam a fazer da vida, eles têm de ver o que andam a fazer da vida.

MVI_6557
JC:
Não havia telefonias em muito lado. Então para ouvirmos a rádio Moscovo, nós tínhamos uma vizinha, que nem toda a gente tinha telefonia, como hoje nem toda a gente tem televisão. Então aquela senhora vivia perto da minha mãe e era prima da minha mãe. Tinha uma telefonia e nós, aí às dez, quando dava a rádio Moscovo, dez, dez e meia aquela hora, olhávamos para todos os cantinhos, que não sabíamos onde eles estavam, púnhamos o xaile preto pela cabeça, e íamos para casa dessa senhora, todas com o rádio baixinho, com o ouvido, ali a ouvir a rádio Moscovo, a ouvir o que eles diziam.
Depois saíamos de lá, olhávamos para todo o lado, não tivesse algum a ouvir a gente ou a ver e lá íamos a gente. Íamos todos os dias.

MAB:
E porque é que iam ouvir a rádio Moscovo? E como é que sabiam da rádio Moscovo?

JC:
Ora, como é que sabíamos. Começávamos a transmitir, este diz isto, tenho de ouvir aquilo, temos de ouvir a outra coisa, olha que aquilo é muito interessante. Começávamos a comunicar umas com as outras e ela dizia, a senhora já era de mais idade, assim como a Celeste, sabia mais que nós, que éramos mais miúdas na mocidade, e lá vínhamos todas. Daí em diante, começamos a perceber o que aquilo queria dizer, da PIDE, de isto daquilo, dos que prendiam, dos que não prendiam. E ouvia-se aquilo. Na rádio.

MAB:
Aqui nas Ilhas

JC:
Aqui nas Ilhas. Lá nas Ilhas, ao pé da minha mãe. Mas íamos às escondidas.

MAB:
Ouviam dizer ou conheciam algumas pessoas

JC:
Não conhecíamos ninguém

MAB:
Que fossem presas

JC:
Cá na minha aldeia, não demos por ninguém. Lá por ninguém ter sido preso ou que tivesse sido castigado ou nada. Na minha aldeia não.

CM:
Em Arraiolos?

JC:
Em Arraiolos também não me lembro.

MAB:
Há pouco falava que gostava muito de mini saia

JC:
Eu gostava

MAB:
Ali na parte da adolescência que usava mini saia. Como é que era a vida aqui nas Ilhas para as raparigas ou em Arraiolos? Usavam mini saia, mas às vezes não eram criticadas? Como é que era assim a vida das jovens, sobretudo das jovens raparigas?

JC:
Das jovens raparigas, éramos a gente, era fazermos os nossos bailaricos. Tínhamos uma sociedade, que era em frente à minha casa, que hoje já não existe, que aquilo caiu tudo, infelizmente. Não temos sociedade, não temos nada nas Ilhas, porque tudo tem acabado, mesmo que a gente peça ajuda, ninguém ajuda. Infelizmente.
E então quase todos os fins de semana havia bailaricos e a gente ia para os bailaricos com os namorados.

MAB:
Iam com os namorados?

JC:
Pois, com os namorados

MAB:
Sem os pais?

JC:
Não, não. Os pais atrás, as mães iam com a gente. Ficavam na cadeira de trás, com os xailes pretos nas costas e a gente andava a dançar. Eu estava com o meu namorado, em casa já por fim, eu casei com 26 anos, o meu marido foi marinheiro dois anos. Eu estava assim num sofá grande, como estou assim aqui, com o namorado, mas já foi assim para o fim dos anos quase de estar a casar. É que ia para casar, que a gente namorava à janela. Não tínhamos ordem de ir para casa. As mães eram rigorosas, mas algumas não viam nada. Queriam ver tudo e não viam nada.
A minha mãe estava ali onde está a Celeste, e eu estava aqui no sofá, ou mais perto com o meu marido, a namorar.

MAB:
Em casa

JC:
Em casa, está a ver.

MAB:
Era em casa?

JC:
Era em casa o último ano, o último ano já pedida para casar. Outros anos era à porta ou à janela.
Eu namorei muito. Eu namorei muito por escrito. Olhe namorar, namorar, só namorei o meu marido. Aos dezoito anos.

MAB:
O que é que era isso de namorar por escrito?

JC:
Era sairmos da escola, fazíamos o escrito: Olha vem. Gosto muito de ti, vem ter comigo a tal sítio. Eu vou à fonte. Íamos à fonte, com o cantarinho

MAB:
Não tinham água canalizada?

JC:
Não tínhamos água, não tínhamos pão. Eu, morávamos nas Ilhas, em solteira, na Ilha do Castelo, e quando casei fui para a Ilha da Boavista, já estou casada há 53 anos, 45 anos que eu estou casada. Íamos ao pão para a semana inteira, à Ilha da Boavista, para a semana inteira, a minha mãe juntava ali o pão, a gente levava o dia inteiro com o pão, debaixo para cima a brincar. E depois aquilo havia uma grande rivalidade entre as duas ilhas, havia lá uma grande pedra, ao pé da Igreja. Aí, à igreja, aí na parte rural, havia uma pedra muito grande que a gente chamava-lhe a pedra da avó.
E então como a gente lhe chamava a pedra da avó, a gente, os rapazes andavam na escola de baixo, que não se juntavam com as raparigas, e a gente andava onde é agora a creche que era onde era a nossa escola. A escola das meninas. A gente punha lá o escritinho e púnhamos debaixo de uma pedrinha. Depois eles vinham da escola de baixo, agarravam o escritinho e liam: Olha ela vem à fonte, às tantas horas. Levávamos horas e horas e horas na fonte, a carregar a fonte. Às vezes partiam-nos os cântaros, porque eles eram pedrada para cá, pedrada para lá, porque não queriam a gente à fonte, depois eles tinham ciúmes da gente. Eu namorei muitos rapazes. Depois eles tinham ciúmes uns dos outros e eu é que a havia de namorar, e tu é que a fostes namorar, tu é que foste pôr o escrito, tu é que não foste lá pôr o escrito. Até que partiam os cântaros à gente. A gente chegávamos a casa sem água nem cântaros. A minha juventude foi muito linda.

MAB:
E a mini saia, como é que tinham conhecimento dessas modas novas?

JC:
Olhe eu era das que usava sempre mini saia.

MAB:
Pois, mas onde é

JC:
Gostava.

MAB:
Sim, mas onde é que via lá a moda da mini saia?

JC:
Não havia lá moda nenhuma, eu gostava de mini saia, punha a mini saia e acabou.

MAB:
Mas viam na televisão, nas revistas?

JC:
A gente lá tinha televisão

MAB:
Mas então como é que

JC:
Mas eu usava sempre mini saia. Quer dizer de pequenina comecei a usar o fato curtinho e não deixei de usar, pronto. Ainda andava nos tapetes e ainda usava mini saia, porque desde de pequenina eu era a mais pequenina, era a mais mimosa. As minhas irmãs, tinha uma irmã que sabia coser muito bem, como a minha ti Bia, cara linda, que era uma bela costureira. E ela fazia os fatinhos para a gente, ela é que cosia os fatinhos para a gente. E depois eu como era a mais pequenina, ela fazia as sainhas curtinhas, eu era muito magrinha, eu casei pesava 46 quilos, o meu vestido de noiva serve assim metade.
E então usei sempre mini saia. Depois eu era sempre muito alegre, cantava muito e dançava muito, ainda hoje danço e canto. E já não consigo cantar mais, porque tenho problemas, mas sempre gostei muito, e elas meteram-me Maria Papoila nessa altura, em pequenina, meteram-se Maria Papoila, só me conhecem por Maria Papoila. Em todo o lado sou a Maria Papoila.

MAB:
Chegou a trabalhar nalguma cooperativa?

JC:
Sim, sim senhora. Trabalhei na cooperativa da Oleirita, que pertenciam os senhores a Santana é que comandavam aquela cooperativa.

MAB:
Santana do campo?

JC:
Santana do Campo. Trabalhei lá cinco anos, no tomate, no arroz, mas na altura da Reforma Agrária, quando foi isso dos tratores eu não trabalhava no campo. Mas apoiava, trabalhava nos tapetes, mas eu ia a todo o lado. Saltava para cima das rulotes e ia com os trabalhadores

MAB:
Quando começaram as entregas aos proprietários?

JC:
Exatamente. Eu ia a todo o lado.

MAB:
Ia às entregas?

JC:
Ia às entregas, ia às entregas sem querermos entregar.

MAB:
Exato, pois.

JC:
Íamos às entregas sem querermos entregar, que era quando eles nos batiam e corriam atrás da gente, e com os cavalos, que fizeram isso a esse senhor, porque queriam as terras e depois mandavam para lá a GNR, para baterem nas pessoas, nos trabalhadores. Mas eu, fosse manifestações em Évora de tratadores, que fosse o 1 de Maio que se fazia no campo, lembro-me tão bem

MAB:
No Alto dos Cucos

JC:
Exatamente, eu ia também. O Avante que quando começou era uma coisa em barro, que se chovia aquilo era barro até aos joelhos. Eu fomos sempre, os meus pais, os meus irmãos, os meus cunhados. Tudo, ia toda a gente. Eu até hoje ainda vou ao Avante, é a festa que eu mais adoro e deus queira que ele nunca acabe.

MAB:
Há pouco falou aí nesse episódio, que era quando as pessoas iam às manifestações, quando os trabalhadores

JC:
Sim, sim

MAB:
Conte-nos essa história

JC:
Íamos a Évora

MAB:
Os trabalhadores rurais?

JC:
Os trabalhadores rurais

MAB:
Das cooperativas?

JC:
Sim. Íamos com as rulotes, com os tratores cheios de pessoas manifestarem-se ao pé dos ministérios, ao pé daquilo tudo. Os senhores da função pública e os senhores bancários, havia aquelas janelas altas onde eles estavam e de lá ofendiam a gente de tudo, mandavam rolos de papel cá para baixo para cima da gente. E saiam daqui malandros que vocês não fazem nada, e saiam daqui malandros que vocês só querem é dinheiro, e saiam daqui malandros que vocês só querem é terras para não as cultivarem. Quem não as cultivavam eram eles, eles. Porque nós temos um Portugal rico em terras e eles são pagos para não cultivarem. Eles são pagos

MVI_6558
JC:
Desde que esteve lá o senhor Cavaco Silva que começou a pagar aos senhores ricos para não cultivarem as terras. Ele é que começou a pagar. Desde aí que as terras começaram a deixar de serem cultivadas. A senhora vê uma terra cultivada aonde? Onde não veja uma amendoeira, onde não veja um abrunheiro, tudo coisas que levam muita água.
Cereais. A gente tinha tanques de arroz que eram herdades, cheiinhas de tanques de arroz, onde nós a ceifávamos, onde nós tínhamos uma máquina na fábrica do tomate que secava o arroz, para depois ser empacotado. Agora vem tudo de fora. Porque Portugal tem uma terra tão rica e ninguém a cultiva. Acabou tudo. E vai acabando tudo a pouco e pouco. Porquê? Por causa dos grandes senhores, dos grandes ladrões que a gente tem, no nosso país.

MVI_6559
JC:
A Associação de Reformados das Ilhas foi fundada só uma casinha, por um senhor que já morreu há muitos anos, que lhe chamavam, que lhe davam um nome, mas ele não era, mas era sempre o senhor Chinês

MAB:
E foi antes ou foi depois do 25 de Abril?

JC:
Depois do 25 de Abril. A casa fez este ano 41 anos. Fez este ano 41 anos. E então, foi feita por esse senhor e por mais pessoas, sem ganharem um tostão, construíram aquela casa toda, hoje um fazia uma porta, amanhã outro fazia uma janela, noutro outro levantava um bocadinho de parede, no outro o outro comprava uma cadeira e assim se foi construindo aquela casa. Depois esse senhor formou uma comissão, com outros senhores, esteve lá muitos anos, com outros senhores numa comissão.
Depois o senhor morreu entrou para lá outro senhor, que esteve lá, esteve lá à volta para aí de uns 30 anos ou mais, a comandar aquilo, a ser o presidente daquilo, porque era nessa altura, que não fazia mala não mudarem, de anos a anos. Então ele esteve lá esse tempo todo, eu fui você presidente desse senhor, fui presidente do conselho fiscal, fui presidente da mesa da assembleia, fui vice-presidente da mesa da assembleia. Depois o senhor teve um AVC, adoeceu ao fim de muitos tempos de lá estar, ao fim de muitos anos, teve um AVC, já era muito velhote, oitenta e tal anos, para aí 85 ou 86, teve um AVC, teve de deixar aquilo. Eu era vice-presidente, tive de me chegar à frente, porque o presidente estava doente.
Daí acabei o mandato dele como vice-presidente, houve eleições, houve outra comissão, entraram muitas colegas minhas

MAB:
Mulheres?

JC:
Mulheres, que se reformaram, homens poucos ou nenhuns. É quase tudo mulheres, quase tudo mulheres, há lá bem poucos homens. Eu não sei, se houver lá dois ou três homens é muito. Mais não há, de resto é tudo mulheres. Eu sou a presidente, trabalho junto a uma rapariga que é muito minha amiga e é o meu braço direito também, porque me ajuda em tudo, que é, ela não é presidente, mas é do conselho fiscal.
Ela é que paga as contas, ela é que faz as contas do dinheiro, ela é dirige o dinheiro. Eu não mexo em nada disso.

MAB:
E a associação de reformados o que é que fazem?

JC:
O que é que fazemos? Temos muita atividade. Temos o almoço do natal, que é enorme, temos o dia da mulher, que é enorme. Temos o dia da Mulher, temos as marchas que também fazem parte, temos a sardinhada também, temos muita coisa. Temos muita festa. Agora amanhã vou fazer filhoses para o carnaval. Todo o ano, temos ginástica, natação, Vidas Partilhadas. Muita atividade.
MAB:
E o teatro?

JC:
O teatro é uma coisa posta pela câmara que nos dá apoio, já fiz um o ano passado

MAB:
Que também está ligado à associação?

JC:
Que está ligado à associação. E então todas as que fazem parte das reformadas, as seniores entra quase tudo, no teatro, na natação, nas Vidas Partilhadas, entra quase tudo, ali da aldeia.

MO:
O que são as vidas partilhadas?

JC:
As Vidas Partilhadas é muito giro. As Vidas Partilhadas é, não é contar da nossa vida, há muita coisa que contamos da nossa vida, da nossa infância, mas as pessoas dizem às vezes assim: Vou agora para as Vidas Partilhadas contar tudo da minha vida. Não é. É contar o que foi a vida do antigamente, olhe é contar como é que nasceu jesus, é contar como é que era a vida da Amália, é contar os filmes da Amália, é contar a vida de muitos artistas, que nós não sabíamos o que era e ficamos a saber porque elas contam à gente e pelos filmes que nos dão, chegamos a estar duas horas, a ver a vida delas naquele filme. É isso que é as Vidas Partilhadas. Não é contarmos as coisas da nossa vida, da nossa casa, porque as pessoas dizem. Vou agora para as Vidas Partilhadas contar coisas que não interessam nada. Nas Vidas Partilhadas aprende-se muita coisa e faz-se muita coisa, como jogos, muitas coisas.

MO:
Para além da associação de reformados que outras coisas houve aqui nas Ilhas, que fossem assim fruto de trabalho voluntário, associativo, que outras coisas é que houve, muitas vezes trabalho gratuito a maior parte das vezes?

JC:
Antes do 25 de Abril?

MAB:
Depois

JC:
Olhe muita coisa. Olhe a matança do porco foi no sábado que eu faço parte, eu é que faço a comida toda, é que faço rechina é que faço tudo, nas vésperas vou temperar as carnes é que faço e no próprio dia comem.
A creche também faz, também faz, os caçadores

MAB:
A creche. Como é que nasceu a creche aqui nas Ilhas? Como é que a creche foi fundada?

JC:
A creche foi fundada por o senhor Jerónimo, que era o presidente da câmara. Jerónimo Lóios.

MAB:
Mas foi iniciativa camarária?

JC:
Mais ou menos. Foi uma ajuda. Mas quem deu o terreno foi a senhora Balbina Piteira, o senhor Augusto Piteira, que lhe morreu o filho no ultramar, mataram-no, não morreu, mataram-no no Ultramar. Então ele deu uma parte do terreno, da quinta dele, para construírem ali uma creche para os meninos. Construíram essa creche com a ajuda da câmara, com o Jerónimo Lóios, foi indo aos pouquinhos, pequenina, foi aumentando

MAB:
E como é que foi aumentando? As pessoas fizeram lá trabalho voluntário ou não?

JC:
Para fazerem de inicio foi trabalho voluntário. Trabalho voluntário como foi a ceifeira. Foi trabalho voluntário tudo. A creche quando começou de inicio com uma coisa pequenina foi trabalho voluntario das pessoas todas que tinham os filhos e não tinham onde os meter e fizeram o esforço para fazer aquilo, para lá os meter. Começou pequenina, agora já tem a ajuda da segurança social, já é uma IPSS, como a nossa e então daí foi crescendo, crescendo, crescendo, já lá têm as crianças todas de Arraiolos das aldeias, de todo o lado, tem muita criança, muita criança.

MAB:
Foi uma iniciativa da população?

JC:
Foi uma iniciativa sim, com o apoio da câmara, do senhor Jerónimo Lóios que apoiou muito, que era íntimo amigo do filho do senhor que deu o terreno. Do senhor Augusto Piteira. Era ele, era o Páscoa, a Carolina e o senhor Jerónimo. Eram eles, muito amigos.

MAB:
E o que é que a ceifeira? E como é que a ceifeira nasceu?

JC:
A ceifeira nasceu. Os supermercados pequenos que havia nas Ilhas, que se chamava o senhor Júlio Caixeiro, que se aproveitava dos pobres, eu tenho de já dizer, eu sou assim. Que se aproveitava dos pobres, a minha mãe comprava um pão e ele assentava dois. O meu pai ganhava as comedias, que lhe chamavam, de setembro a setembro. Quer dizer que quando recebia o dinheiro de setembro a setembro, não chegava para pagarem, ficavam logo a dever, porque ele no lugar de por um pão que a gente levava, punha dois. No lugar de por um quilo de açúcar punha dois. Porque assim é que eles enriqueceram. Porque eles nunca trabalharam, porque eles nunca trabalharam e eram ricos tinha de lhes vir de algum lado. Porque nós fartamo-nos de trabalhar e nunca enriquecemos e eles enriqueciam sem trabalho, tinha de vir de algum lado. Faziam assim.
E era o senhor Juncal, que lhe chamavam cá na outra ilha, que é onde eu moro, na Ilha da Boavista. Depois deu-se o 25 de Abril, quando se deu o 25 de Abril eles começaram a entrar na reforma, velhotes. O senhor lá das minhas Ilhas, tinha só uma filha, não quis saber daquilo para nada, que era professora. E ele fechou. E depois o de cima, tinha também filhos, depois como se deu o 25 de Abril e estavam sempre a chamar-lhe nomes e és um fascista e não sei quê. E ele passou-se e já estava também idoso e fechou também aquilo.

MAB:
Fechou a loja?

JC:
Tinha um talho, tinha um talho, que era também onde a gente ia à carne e uma mercearia. A minha mãe trabalhou uma vida inteira para ele, a encher carne para esse talho. Fecharam.
Depois não havia nada, houve a iniciativa do senhor Augusto Piteira, dar esse terreno que é onde é a ceifeira, que também era dele, foi feita uma ceifeira, que lhe puseram esse nome da ceifeira, mas era um supermercado enorme. Ali comprávamos tudo. Era talho, era gás, porque nessa altura já havia gás, era gás, porque deixou de haver petróleo, passou a haver gás. Era gás, era carne, era fruta, era tudo, a gente comprava naquela ceifeira. Tinha uma refeição como tem a refeição dos reformados. A comissão foi acabando, uns foram morrendo, os novos já se sabe como é que é, não querem responsabilidades, não querem entrar, aquilo chegou ao ponto que as pessoas tiveram que arrendar aquilo. A todas as pessoas que lá estavam, que arrendaram aquilo, não pagavam a renda, foram montar cafés, outros abalaram porque não queriam. Aquilo acabou por fechar

MAB:
Mas então a ceifeira era uma cooperativa?

JC:
Era uma cooperativa

MAB:
De consumo

JC:
De consumo. Feita pelo povo, tanto que não a podem, não puderam vender a ninguém, porque aquilo era do povo. Foi doada à junta de freguesia para a junta de freguesia

MVI_6560
JC:
Fazer lá o que nós queríamos, porque não era ela que ia escolher, porque não foi a junta de freguesia que a fez. Nós escolhemos um centro comunitário. Já está com a planta feita e o projeto há dez anos. Acho eu que está para ser começado brevemente, brevemente para um centro comunitário.

MO:
E o que vai ter esse centro comunitário?

JC:
Esse centro comunitário acho eu que é para, pessoas que queiram lá ir, idosos que queriam lá ir passar um bocado, pessoas que não tenham onde ir tomar banho, que tenham onde ir tomar banho. A gente não sabe ainda bem se irá também pessoas que não são capazes de fazer comida fazerem, é um centro comunitário para apoio de pessoas que não possam fazer nada. Penso eu que seja assim, porque eu ainda não vi o projeto, ainda não vimos nada, há dez anos que estamos à espera. E estamos assim.

Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora

Entrevistada: Mariana dos Santos

Nome: Mariana da Graça dos Santos
Data da Entrevista: 2024-03-18
Concelho: Évora
Freguesia: São Manços e São Vicente do Pigeiro
Data de Nascimento: 1944-10-18
Situação profissional: Aposentada
Última ocupação profissional: Trabalhadora rural
Estado Civil: Casada

Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora

Entrevistada: Francisca Rosa Passarinho Ramalho

Nome: Francisca Rosa Passarinho Ramalho
Data da Entrevista: 2023-12-13
Concelho: Évora
Freguesia: São Manços e São Vicente do Pigeiro
Data de Nascimento: 1944-10-27
Situação profissional: Aposentada
Última ocupação profissional: Trabalhadora Rural
Estado Civil: Viúva

Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora

Results 1 to 10 of 136