Documento simples 0001 - Entrevista a Maria José Serra

Zona de identificação

Código de referência

PT/CIDEHUS/SHAMEM/VOZPLU/0001/0001/0004/0001

Título

Entrevista a Maria José Serra

Data(s)

  • 2023-10-24 (Produção)

Nível de descrição

Documento simples

Dimensão e suporte

466MB; suporte digital (mp4)

Zona do contexto

Nome do produtor

(1994 -)

História administrativa

Fundado em 1994 , o CIDEHUS começou por designar-se “Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Humanas e Sociais”. A sua área disciplinar nuclear era então a Sociologia.

A sua atividade organizava-se em quatro grandes campos:
1) Sociologia do Desenvolvimento;
2) História da Europa do Sul e do Mediterrâneo;
3) Educação e formação profissional;
4) Linguística Geral.

Em 2001 , quando passou a ter na História a sua disciplina nuclear , mudou de designação para Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades . Manteve a mesma sigla (CIDEHUS) e organizou-se em seis linhas:
1) O Sul: dinâmicas sociais e políticas
2) O Sul: culturas, discursos e representações
3) O Sul: património edificado, cultura material e arqueologia
4) Portugal e a Europa
5) Portugal e o Mediterrâneo
6) Portugal e os espaços de presença lusófona

Em 2007 , o CIDEHUS fixou a sua atenção nas problemáticas do Sul , condensando as anteriores linhas em três grupos:
RG1: O Sul e o Mediterrâneo: dinâmicas sociais e culturais
RG2: Património, Cultura Material e Arqueologia no Sul da Europa e no Mediterrâneo
RG3. Bibliotecas, Literacias e Informação no Sul

O programa nuclear foi de novo reajustado em finais de 2013 , configurando-se em torno de: «História, património e mudanças societais: um laboratório do Sul», ramificando-se em duas linhas temáticas, subdivididas em grupos – “L1: Mudanças societais” e “L2: Património e diversidade cultural” – e num grupo de articulação – Literacias e património textual.

O CIDEHUS assumiu então o modelo de laboratório para salientar o seu dinamismo e o seu interesse no conhecimento aplicado .

Em 2018 , o CIDEHUS sofreu uma nova reorganização, passando a dividir-se em apenas dois grupos:
G1 – Mudanças societais
G2 – Património, Literacias e Diversidade cultural.

Com esta alteração, o CIDEHUS pretende reforçar a coesão, estimular o trabalho colaborativo e potenciar as abordagens interdisciplinares.

No passado recente do CIDEHUS, destacam-se ainda os seguintes marcos institucionais:

  • 2013 – Criação da Cátedra UNESCO
  • 2014 – Criação do Laboratório de Demografia (DemoLab)
  • 2016 – Lançamento do CIDEHUS Digital
  • 2017 – Criação Laboratório de Turismo (Tourism Creative Lab).

História do arquivo

Fonte imediata de aquisição ou transferência

Zona do conteúdo e estrutura

Âmbito e conteúdo

Composto pela gravação audiovisual da entrevista e a respetiva transcrição.

Transcrição Maria José Serra
Entrevistada: Maria José Serra (MJS)
Entrevistadora: Manuela Oliveira (MO)
Localidade: Portel
Data: 24 de outubro de 2023
Transcrição: Diana Henriques (20/11/2023)

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MJS:
Antes do 25 de Abril, primeiro quero já dizer, que não tenho muita, muita recordação em termos de pormenor da minha infância e da altura do 25 de abril, mas tenho recordação de situações e hoje olhando para trás percebo as grandes diferenças do antes do 25 de Abril e do depois do 25 de Abril.
Eu já nasci, na casa da minha mãe, como era, e do meu pai, como era um segundo parto tivemos direito a uma parteira e então foi a parteira que fez o parto, portanto nasci lá mesmo em casa. Eu sempre tive uma grande diferença de vida em termos de coisas materiais, que os meus amigos mais novos ou mais velhos não tinham. Nós brincávamos essencialmente na rua e frequentávamos a casa de todos, embora a nossa casa fosse a rua. Eu notava realmente diferença entre a nossa casa e a casa dos meus amigos. A casa dos meus amigos era mais pobre, mais degradada, eu não sabia que era pobreza era, não tinham as condições que eu tinha na minha casa, porque eu tinha casa de banho, embora tenha perfeita noção e recordações de dar banho dentro de um alguidar de zinco muito grande que a minha mãe tinha. Portanto a minha mãe aquecia água na panela de ferro, no lume de chão, metia essa água no alguidar, dava banho primeiro a mim e depois, com a mesma água dava banho ao meu irmão. Para não termos frio enrolava-nos num trapo e punha-nos à lareira, portanto ficávamos com um cheirinho agradável a chouriço fumado. Acabadinhos de dar banho, além ao fuminho da lareira.
Tínhamos um género de balde com chuveiro e depois mais tarde, findo esse período de dar banho no alguidar de zinco, comecei a dar banho no balde de chuveiro. Preservo esse balde, acho que esse balde representa muito daquilo que foi a minha infância das condições que nós tínhamos e então preservo o balde, para me lembrar todos os dias ou pelo menos quando o vejo que hoje em dia basta abrir uma torneira e nós temos água quente como queremos.
Tínhamos televisão, era a única televisão na rua, nas redondezas até, e o meu pai quando havia touradas, sobretudo touradas, colocava a televisão junto à janela, de forma a que todos os que quisessem ver a televisão pudessem usufruir da tourada ou de um programa qualquer especial.
Tínhamos frigorifico e uma coisa extraordinária tínhamos telefone. Era talvez o telefone, era o telefone publico da vila. Eu passava o tempo a ir dar recados às pessoas, que olha Francisca amanhã às duas horas está na minha casa porque a tua irmã vai-te telefonar da Alemanha. Não me iam, não me deixavam ir dar as notícias da morte, lá ia a minha mãe, mas também recebíamos notícias do hospital a dizer olhe está aqui uma senhora internada e faleceu esta noite, você conhece a família? Claro que conhecíamos, porque conhecíamos toda a gente e lá íamos nós dizer neste caso a minha mãe, que a pessoa tinha falecido. E porque é que nós tínhamos telefone? Nós tínhamos telefone porque o meu o pai trabalhava nos CTT, portanto todos os trabalhadores dos CTT tinham direito a ter um telefone e a usar o telefone como entendessem. Durante muitos anos nós não pagávamos nem mensalidade, nem telefone ao fim e ao cabo.
Nós tínhamos também brinquedos diferentes, porque tínhamos bicicletas, embora para eu sempre recebesse a bicicleta em segunda mão do meu irmão, tínhamos patins, também foi assim, também recebi os patins em segunda mão do meu irmão, porque ele teve uns novos patins e eu tive patins. Eu tinha muita boneca, porque no Natal os CTT davam sempre prendas, os CTT ou os a associação dos CTT, eu acho que era mais um tipo de sindicato a que o meu pai pertenceria e que nós recebíamos sempre prendas boas no natal.
Antes do 25 de Abril, com sete anos, não tenho grandes recordações, muito mais recordações, mas sim lembro-me de os meus amigos terem uma vida diferente da minha, pelo menos em termos de comodidade de casa e de vida. Lembro-me da casa da minha avó, das minhas avós e do meu avô, que conheci. Ele era doente, portanto não trabalhava e na prática ficava connosco quando a minha mãe precisava. A minha avó cozinhava sobretudo à lareira, tinha um fogão, mas não sei se ela chegou a usar o fogão, não tenho recordações dela própria utilizar o fogão. Lembro-me de que quando a minha mãe ia lá a casa usava, a minha tia também, mas acho que sobretudo cozinhava na lareira no lume de chão. A minha outra avó, a mãe do meu pai, era uma pessoa muito austera, controlava o comer que nós comíamos, embora fosse o meu pai que pagasse e a minha mãe respondesse de lá de cima da varanda que eu podia comer aquilo que eu quisesse que era ela que comprava e não era a minha avó. Portanto havia além travão. Nunca comi na casa da minha avó paterna, nunca. Até porque eu gostava muito de frango e toda a gente da família, que tínhamos muitos familiares diziam olha Zezinha hoje tenho carne curucucu, queres vir cá almoçar? E eu ia almoçar à casa da pessoa que tinha carne curucucu. À exceção de uma tia da minha mãe, logo uma segunda tia minha que cozinhava mal e eu nessa altura já tinha algum sentido pouco obediente e então eu respondia automaticamente não, não vou à tua casa que tu não sabes fazer curucucu. Pronto, a senhora ficava muito ofendida. Em contrapartida, eu comia todo o requeijão e todo o queijo que ela fizesse, porque ela fazia realmente uns, um requeijão e um queijo muito bom.

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MJS:
O meu irmão tinha a única bola de futebol, da rua e praticamente da vila, pelo menos era a bola pública. Então a minha mãe só deixava o meu irmão ir brincar para a rua quando tinha os trabalhos de casa feitos e nós tínhamos uma sala que basicamente era uma camila, uma mesa redonda com uma saia no meio da casa com umas cadeiras e era aí que ele fazia os trabalhos de casa. Surpresa das surpresas, dois minutos depois do meu irmão ir fazer os trabalhos de casa já estavam feitos, mãe já fiz. A minha mãe ia ver os trabalhos e ele tinha os trabalhos todos certos, a minha mãe começou a desconfiar, ele passava o caderno pela janela, o Espalha, que é dez ou não sei, mas muito mais velho que o meu irmão fazia-lhe os trabalhos para ele poder sair de casa rápido, para eles poderem ir brincar.

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MJS:
Ao contrário de relatos que tenho ouvido de pessoas que têm, que da minha idade ou mesmo do meu marido que é três, dois anos mais velho que eu. Eu não me lembro do dia exato do 25 de abril. Eu não sei se fui à escola ou se voltei, eu não sei se continuei na escola, o dia exato não me lembro. Sei que nos dias seguintes, sim, o meu pai disse para nós termos cuidado, para prestarmos atenção às pessoas que víamos, porque podia haver um revés da coisa, nós tínhamos ganhado a liberdade, mas poderia ainda não ser efetivamente concluído e para nos termos atenção.
Depois, os factos do 25 de Abril lembro-me de serem tomadas as terras, a propriedade das terras aos latifundiários, aos agricultores da zona. Lembro-me das pessoas irem trabalhar para essas terras, de haver uma cooperativa que distribuía esse trabalho, e as pessoas iam trabalhar. Lembro-me de mais trabalho, pessoas que não trabalhavam, até essa altura, inclusive a minha mãe, começaram a trabalhar, porque por exemplo de fazerem uma reflorestação, não me lembro os anos, reflorestação de eucalipto nas terras. A minha mãe andou a plantar eucaliptos muito tempo, nessa altura eu ficava com minha avó e o meu avô que ainda eram vivos. Ia à escola, voltava e ia almoçar à casa deles e depois retornava à escola. O meu avô fazia o melhor calducho com ou sem cilarcas que alguma vez eu vou comer, nem eu consigo fazer um calducho como tenho recordações do calducho do meu avô.
Lembro-me o meu pai, muito importante, teve direito a subsídio de férias e então nós em vez de fazermos campismo selvagem, não era bem pelo campismo, mas em vez de irmos acampar uns dias à praia da lagoa de Santo André, com um pano a prender no carro e dormíamos debaixo daquele pano e a minha mãe, fazer vida na rua comum fogão e pronto. Desenrascávamo-nos assim e tivemos direito a uma tenda grande com dois quartos. O meu irmão teve direito a uma tenda pequenina canadiana e nós até tínhamos cadeiras que era extraordinário uma mesa com cadeiras sentávamo-nos à mesa a comer, já não comíamos com o prato na mão. Com o primeiro ano que o meu pai recebeu o subsídio de férias comprou essa grande solução e grande inovação para nós usufruirmos.
O pós 25 de Abril a parte da liberdade sou sincera, só tenho recordações pelo que me foi transmitido em termos pelo meu pai e pela minha mãe, de como não podiam falar, em como era conspiração falarem duas pessoas à noite, que não tinham liberdade. Passavam muitas dificuldades em termos de vida, que não se podia falar, Zezinha isto não se diz e a Zezinha guardava segredo, que o pai ou a mãe tinham-lhe dito aquilo, tinham feito aquilo, portanto não se podia.
Lembro-me do meu pai participar ativamente na eleição do Ramalho Eanes, do presidente, para presidente da república do professor, general Ramalho Eanes. Inclusive, o meu pai andou na campanha e pertenceu ao partido socialista lá à secção de Portel e não sei se não terei andado na caravana do professor Ramalho Eanes, não tenho recordações, mas seguramente andei na do Mário Soares. Sem ter idade para votar, mas o meu pai ia e eu ia também. Ia porque aquilo era muito giro. Mais recordações do pós 25 de Abril, pois, em termos de vida nós se já tínhamos uma vida boa, comparada com a dos meus amigos, melhoramos significativamente.
O meu pai deixou de estar afeto a Portel e a andar a reparar as vias e a instalar os telefones e começou a trabalhar na Telecom ou no distrito de Évora onde era necessário. Então o meu pai às vezes estava a semana toda sem regressar a Portel, mas tinha direito a levar um carro da empresa para Portel e tinha direito a trazê-lo na segunda feira para casa.
Que mais diferenças eu notei eu após o 25 de Abril, o desenvolvimento, sobretudo, de Portel. Nós erámos uma vila com as ruas de terra batida, não havia saneamento básico, como hoje, como hoje ou como nos anos seguintes foi feito, a água também foi uma coisa que começou a haver mais utilização ou a possibilidade de as pessoas terem água canalizada em casa. Lembro-me de inclusive havia aldeias que não tinham mesmo saneamento nenhum, também foi feito depois e lembro-me sobretudo da alegria das pessoas, das festas. Havia bailes por tudo e por nada, havia uma festa por tudo e por nada e como é obvio Maria galdéria assistia a tudo, ia a tudo o que fosse festa em Portel, não interessava quem fazia a festa, não interessava para que era a festa, Maria José ia.

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MJS:
Ia sozinha, pois, porque Portel era uma localidade segura e eu ia lá com a vizinha ou com a prima ou com, pronto. Lá ia eu à festa e às patuscadas todas, pronto. São basicamente, a diferença dessa, da melhoria de vida das condições de vida das pessoas que me rodeavam e também a alegria que havia das pessoas poderem andar e fazerem aquilo que elas quisessem. Poder falar, poder gritar ao mundo a sua revolta e a sua necessidade de melhor as condições de vida.
Lembro-me de uma coisa muito importante, nós tínhamos um médico que era o doutor Pita e o doutor Pita, verdade que seja dita, consultava-nos a qualquer hora do dia ou da noite, embora ele pudesse estar embriagado. Mas parece que com os medicamentos não matou ninguém e então, nós íamos bater à porta do doutor Pita e ele atendia-nos, a dona Glória ia chamá-lo e ele vinha para o consultório, tinha o consultório à porta e lembro-me do novo boom de médicos a chegarem a Portel. Uma diferença muito significativa, porque tínhamos médicos em Portel, tínhamos médicos em Monte do Trigo, tínhamos médicos na Amieira, mas sobretudo tínhamos em Portel e em Monte do Trigo. Porque eu tive uma otite e ele receitou-me uma medicação que não estava a funcionar e eu fui a Monte Trigo a um médico, interessantíssimo, ao entrar no consultório ele disse-me então Zezinha, como é que te sentes? Como é que ele sabia o meu nome, claro que eu não sabia que a minha mãe tinha preenchido a ficha e que lhe tinha dado o nome a primeira vez que me via e conhecia-me. Foi muito interessante essa experiência e melhorei, realmente, melhorei da otite. Tivemos, começamos a ter acesso aos médicos mais médicos e a mais saúde. Lembro-me de irmos fazer em base no Monte do Peral enquanto não se estabeleceram em Portel, porque o Monte do Peral tinha sido tomado ao Américo Amorim e pertencia à cooperativa de Monte Trigo, então cederam-lhe o monte para eles poderem-se estar ao fim e ao cabo.

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MJS:
Em termos de câmara, vergonha das vergonhas, mas eu não sei qual foi o primeiro presidente a seguir ao 25 de Abril, não tenho recordações. Mas tenho recordações de malta nova que nós tivemos a primeira presidente da câmara municipal de Portel da minha recordação que fez uma revolução enorme. Tão, tão, tão revolucionária que acabou por deixar o segundo mandato, porque já não suportava aqueles homens a apontar-lhe o dedo.
Mas tivemos o direito a piscinas, tivemos direito a muita obra, muita coisa feita na vila em termos de recuperação, em termos de acesso a todos. Os do concelho também tiveram muita obra feita não foi só na vila, foi também no concelho. Lembro-me da coragem dessa senhora a fazer, a construir essas piscinas, porque a opção orçamental era deixar duas das aldeias, ainda sem saneamento básico ainda para construir a piscina e a decisão foi também muito acertada, um mandato, menos um mandato e foi não fazer o saneamento básico nas duas aldeias, porque não havia dinheiro suficiente, mas fazia as piscinas que todas as crianças e todos os adolescentes do concelho poderiam usufruir e efetivamente foi uma obra grande e de renome, para Portel. Claro que depois o saneamento foi feito.
Lembro-me sobretudo da melhoria da vida que nós, em termos de usufruir da saúde, já não tínhamos só o doutor Pita, embora nós continuássemos a ter o doutor Pita, ele depois integrou o centro de saúde, mas tínhamos médicos, tínhamos mais médicos e mais novos que o doutor Pita, com outra perspetiva da vida. Acho que é sobretudo isso.

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MJS:
Sim senhor, então. Em termos de sociais lembro-me de andar na escola primária, nas antigas duas escolas primárias, eu era da escola primária dos rapazes, naquela altura já não havia a separação dos rapazes e das raparigas, mas a escola foi sempre conhecida como a escola dos rapazes e a escola das raparigas. A dada altura, o meu irmão fez a quarta classe e era para continuar a estudar e ele ainda foi para a Vidigueira estudar, só que, entretanto, construíram a escola preparatória de Portel e ele não tenho bem a certeza se a meio do ano ou se mudando de ano veio para Portel estudar. Outra grande inovação, não só pela escola em cima, mas pelo a introdução de novas pessoas em Portel, com outros conhecimentos, com outros estilo de vida, com outras abordagens para as coisas, tivemos muita sorte nessa altura, porque os professores também não havia a facilidade que há hoje me termos de deslocação, mas igualmente os médicos, também ficaram em Portel e não se coibiram de interagir na vida, não era só na escola, era também na vida das pessoas e ser parte integrante das pessoas. E aqui tenho também de prestar homenagem a um grande professor, professor Jorge Garcia que desde sempre viveu em Portel e que ele fez muita diferença, muita diferença na vida daqueles em quem tocou, pela sua maneira de ser, pela forma de vida simples e desregrada que sempre levava, pelo gosto pelo campo, pela caça, pelo gosto de viver e o saber viver, viver à maneira dele, sempre sem regras e sem imposições que isso era uma coisa que era de bradar aos céus. Era completamente impensável, um professor vir para Portel, ir morar para uma horta e ainda fazer patuscadas com os alunos à noite, cantando e tocando viola. Era completamente impensável nessa altura, mas ele fazia. Portanto em termos, de escola, tivemos essa grande mudança, eu como é obvio quando acabei a quarta classe mudei-me para a escola preparatória pré-fabricada, não sei se nessa altura já íamos até ao nono ano ou não, mas eu sei que fiz o nono ano nessa escola. Foi exatamente o último ano que a escola foi utilizada, porque, entretanto, a nova estava construída e quando eu venho para Évora, a escola de Portel nova inicia-se. Colegas meus que não tinham passado por qualquer motivo acabaram por estrear a escola, eu quase que estive a chumbar para ir para a nova escola.
Depois em termos de introdução de novas pessoas, de novas vivências não posso deixar de falar de também na situação do cultural com um animador cultural que a câmara contratou, de seu nome Manuel Brandão, que introduziu muita dinâmica e muita cultura em Portel. A cultura em Portel não havia, não existia. Uma exposição de pintura, o que é isso, um teatro, credo, às vezes só na televisão, e assim, ou de uma companhia que rebuscava além e ia a Portel. Mas nós, a sala de espetáculos que tínhamos era a artística era muito incipiente, embora servisse para os propósitos até à data e durante muitos anos também serviu. Havia cinema, havia cinema por parte do professor Norberto Patinho e aí tínhamos o privilégio de todos os domingos à noite poder ir assistir a um cinema, que era ele que escolhia e provavelmente era aquele que já tinha muitos anos. Aquela história do ir à estreia de um filme, o que é isso, os filmes estreiam-se? Nós não sabíamos. Eram sobretudo e lembro-me perfeitamente, eram filmes indianos, daqueles das senhoras com a cara tapada, ó que interessante que aquilo era. Aprendíamos muito, sobre a Índia.
Mais o Manuel Brandão criou-nos uma dinâmica sem fazer exceção de absolutamente ninguém, criou-nos uma dinâmica de cultura e de abertura da manete, abertura das ideias, de nós pensarmos por nós próprios e pela nossa própria cabeça. Do questionar, do pôr em causa, do não seguir os grandes chavões só porque é implementado que é assim. Manuel Brandão fez de todo, de tudo sobretudo uma grande diferença para aquilo que hoje sou. Contribuiu muito na minha formação pessoal em como pessoa, em como ser humano, porque eu não teria não seria aquilo que sou hoje se não tivesse tido o Manuel Brandão como mentor.
Fiz parte do teatro, fiz parte da ginástica, fiz parte da dança aeróbica, fiz parte do basquete, fiz parte das excursões todas que havia, porque basta, bastava nós pensarmos vamos fazer uma excursão e a excursão estava realizada. Nós íamos falar com o Manuel Brandão e o Manuel Brandão fazia o milagre, arranjava-nos o autocarro, arranjava-nos as coisas todas com a condição de nós nos portarmo-nos bem e não haver problemas. Desde que vocês continuem assim, vocês vão tendo as coisas que nos vão solicitando, é claro que nós nos organizávamos de maneira a não acontecer nada, que toda a gente portar bem. Pronto, às vezes acontecia um álcool a mais, havia assim, mas era tudo controlável, porque nós tomávamos conta uns dos outros e não deixávamos que as coisas descambassem para a desgraça.
Fiz parte dos grupos arqueológicos que foram criados também em Portel, os meus verões eram passados em escavações, com o Paulo Lima e com outras pessoas que iam variando ao longo do tempo. Eu estabeleci também grande relação com o Paulo Lima em termos da arqueologia que era também uma coisa que também não se fala, não se sabia e nós começámos a fazer arqueologia.
Lembro-me sobretudo em termos de desenvolvimento, a vila tornar-se mais branca. Acho não, tenho a certeza que houve até um slogan “Portel Vila Branca”. Ao ponto de não sei se a junta de freguesia se a câmara, dar, caiar as ruas das pessoas que não tinham possibilidade para o fazer. Podia estar aqui 100 anos dizendo diferenças do pós 25 de Abril, que é ao fim e ao cabo, toda a minha vivência.
Mas quero falar agora sobre o papel da mulher do pós 25 de Abril. E para falar do pós tenho de falar do anterior. Quero esclarecer que lá em casa, na minha casa quem mandava era o meu pai, mas quem mandava no meu pai era a minha mãe. Portanto, eu tive uma vivência logo completamente diferente de todos os meus colegas e de toda a minha vizinhança. A mulher era reduzida a empregada da limpeza, tinha obrigação de tratar dos filhos, de acompanhar os filhos, tinha a obrigação de ter a casa limpa, asseada. O asseio era uma coisa extraordinária, havia definições de asseio muito, muito giras. Manter a casa limpa, ter a mesa posta quando o marido chegasse a casa e o comer pronto, óbvio. Se a mesa não estava posta já era um grande desaforo, não ter comer então pronto dava direito a uma sova, ali um muro, os muros nas ventras para ela aprender, pronto. O papel da mulher mudou muito, a mulher não tinha direitos, a mulher só tinha deveres. Quando morria alguém da família, o pai, a mãe, os homens faziam luto, também era prolongado, mas as mulheres eram quase sacrificadas, quase anuladas com os símbolos do luto, do xaile na cabeça, do lenço na cabeça, das meias pretas, embora estivesse 42 graus, mas elas não podiam sair de casa sem as meias pretas.

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MJS:
Mulher de limpeza. Após o 25 de Abril começou-se, comecei a reparar e comecei a notar que a mulher se tornou muito mais ativa. Eu fui talvez da primeira geração que teve determinadas liberdades que para hoje, para um jovem, é um dado adquirido, mas para nós, com a nossa idade e sendo mulher tivemos que a ganhar. O facto de poder sair de casa, quando quisesse e lhe apetecesse e tivesse vontade. O facto de poder frequentar cafés, porque uma mulher decente não ia a um café até porque eu só comecei a estudar na universidade, anos mais tarde, do que findo o décimo segundo, porque o meu pai entendeu que se eu quisesse estudar tinha que ser enfermeira e tinha que estudar aqui em Évora, porque todas as que foram para Lisboa foram putas. E eu entendi que se ele queria tanto um enfermeiro na família dele que ele se inscrevesse e fosse tirar o curso.
Portanto comecei a trabalhar, já fora de tempo vou-me matricular na escola para concluir mesmo a escolaridade e depois tive a sorte de abrir o curso pós-laboral da moderna em Beja e ir para a universidade. Mas eu lutei com aquele estigma da mulher não faz isto, a mulher não, não, não tem isto, não tem, aquilo. Posso dar por exemplo, a situação do carro, a minha mãe não tinha carta de condução, nem pensar em tal uma mulher tirar a carta de condução. Eu não me lembro de ninguém, de nenhuma mulher com carta de condução até se calhar aos meus quinze, dezasseis anos, eu não me lembro de mulher nenhuma a conduzir. Havia os homens sim senhor, mas as mulheres, nem pensar em tal que isso era um escândalo. Mais, em termos do papel da mulher, posso dar o exemplo de as raparigas para saírem de casa terem de ser sempre acompanhadas, nem que fosse pelo irmão mais velho que era o meu caso, mas depois ele chegava à festa e dizia-me assim olha, quando a festa acabar a gente juntasse aqui, não falhes, olha que eu vou para casa e tu ficas aí e depois a mãe já não te deixa vir. E eu passava o tempo todo lagarteando para onde eu queria, fazer o que eu queria, aquela hora que a festa acabava, tava lá no sítio e íamos os dois para casa como se estivéssemos os dois sempre juntos. Pronto, porque se a minha mãe sonhasse que eu tive na festa e que o meu irmão não tivesse de olho em mim, eu não ia à próxima festa.
As mulheres não fumam. As mulheres não fumam, que vergonha as mulheres fumarem, isso são coisas de homem. Fumei, fumei e continuo a fumar, pronto.
As mulheres começaram a fazer parte integrante de associações. Eu lembro-me do desenvolvimento do grupo desportivo de Portel, o meu pai fazia parte da direção do grupo desportivo e lá ia a Maria José ao domingo ao futebol. Depois do futebol íamos para a encruzilhada tira um petisco. Coisas de homem, alguma vez as mulheres vão tirar petisco. Nem pensar em tal, nós íamos. Tirávamos o petisco estávamos lá a conviver, estávamos lá a conviver, maior parte das vezes com montes de homens, pronto. Mulheres poucas, éramos nós e eventualmente mais uma ou duas e depois íamos para casa e, se quiséssemos ir ao Sonoro do senhor Patinho, ainda podíamos sair outra vez domingo à noite para ir ao Sonoro.
Tínhamos o jardim, tínhamos o jardim que podíamos ir até ao jardim, o jardim parque doutor França, que podíamos ir até ao jardim passear também. As mulheres começaram a viver a vida de outra forma com as mesmas liberdades, embora de uma forma, quase de luta, que os homens tinham. O meu irmão nunca dizia que saía, o meu irmão saía e pronto. Ele além até aos doze, treze anos, sim senhora, tinha de dizer onde ia. A partir dessa idade, ele saía quando queria, desde que comparecesse às refeições a situação estava resolvida, ele não precisava. Era rapaz, agora tu eu tenho de saber onde tu andas. Já vistes depois as vizinhas saberem que tu regressas à uma da manhã, onde estivestes tu até à uma da manhã, que vergonha é esta. Lutamos, conseguimos, os mais jovens têm esse privilégio de poder viver essa vida sem restrições completamente nenhumas. Começou a haver mulheres, há pouco falei do luto, depois não conclui o raciocínio, após 25 de Abril o xaile pela cabeça caiu, o lenço na cabeça caiu, as meias pretas caíram e hoje em dia, já temos muitas mulheres, que não fazem luto, pelo menos não fazem luto, apresentando em termos de roupa, fazem o luto como é obvio. As de hoje em dia fazem luto à sua maneira e da forma que querem. As mulheres que foram obrigadas a fazerem luto de xaile na cabeça e de lenço na cabeça hoje ganharam uma nova vida, são livres. Tornaram-se ativas na sociedade e em Portel frequentam a Universidade Sénior, fazem teatros, participam em filmagens que a Rosa desenvolve e ocupam-se. E fazem hidroginástica, uma mulher em fato de banho, credo alguma vez, nem pensar em tal, nem tinham fatos de banho e iam à praia e se quisessem iam de bata e a bata era suficiente para estarem além nas ondas para estarem a chapinhar. As pessoas com 80 e não sei quantos anos em fatos na hidroginástica, a novidade não está na hidroginástica, está sobretudo na mulher ser permitido vestir fato de banho.
Em termos de mais regalias que a mulher foi conquistando, é muito simples, é nós pensarmos que passaram de procriadoras e de mulheres da limpeza para seres humanos, respeitados e com direito a poder expressar e poder viver a vida delas como querem. Claro que ainda há restrições, claro que ainda leva nas trombas, vai sempre existir, mas cada vez mais isso não acontecesse. Cada vez mais a mulher atingiu a sua liberdade, vive a vida e trabalha. Trabalha fora, trabalha, ganhando também e contribuindo também para a economia familiar.

Avaliação, selecção e eliminação

Ingressos adicionais

Sistema de arranjo

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